Como outros acontecimentos do mundo, também as palavras se transformam e, ao longo do tempo, muitas são criadas para expressar fatos novos, enquanto outras alteram seus conteúdos para transmitir idéias e conceitos que não existiam antes, ou não seriam compreendidos por diferentes gerações. Fármacos, certamente é uma delas e, neste caso, uma abordagem histórica pode levar um pesquisador a descobertas surpreendentes.
O conceito de fármacos, para a maioria das pessoas, muito provavelmente remete a um ambiente de alta complexidade tecnológica envolvendo estruturas moleculares as mais diversas e, outra característica de hoje: oportunidades de grandes lucros num mercado de bilhões de dólares.
Mas nem sempre foi assim. A farmacologia nasceu com a humanidade ainda que possa ter se transformado a ponto de parecer irreconhecível aos olhos de hoje. Mel, raízes, uma profusão de ervas, larvas, sem falar de saliva e mesmo urina, num passado ainda recente, foram a única chance de cura a pacientes necessitados, fossem eles pacatos comerciantes, mulheres em difíceis trabalhos de parto, agricultores sobrevivendo em áreas remotas, ou soldados feridos em campos de batalha.
O casal Robert e Michèle Root-Bernstein, em Honey, Mud, Maggots and Other Medical Marvels, traduzido no Brasil por A Incrível História dos Remédios (Editora Campus, 1998) é exemplo de uma fascinante incursão numa área do conhecimento onde o limite entre o aceitável e o repugnante, ou condenável, depende mais de valores sociais em vigor que de um potencial terapêutico. A cannabis, é um dos melhores exemplos.
Investigações arqueológicas registram a presença da Cannabis (indica, ruderalia e sativa) em tratamentos de saúde atribuídos desde partos difíceis, passando por estimulante sexual e tratamento de asma a, mais recentemente, glaucoma e enjôo produzido por quimioterapia ou radioterapia. Mesmo assim, esta planta, que ainda divide os pesquisadores quanto à sua classificação botânica, não venceu a resistência da maioria dos governos, em alguns casos, como ocorre no Brasil, mesmo para emprego homeopático, quando a diluição faz de seu princípio ativo, o THC, algo desprezível, ao menos na interpretação alopática.
A verdade é que os desafios, envolvendo a farmacologia, não são diferentes dos que se manifestam em outras áreas da ciência e a razão disso parece ser relativamente simples: o conhecimento do novo não pode ser assegurado pela pura tradição. Se fosse assim, o novo, em sua essência, não teria como manifestar-se. Galileu sorriu com desdém quando Kepler manifestou interesse por forças agindo à distância, a gravitação universal de Newton.
Críticos inconformados acusaram Wegener de "charlatanismo" com a idéia de placas tectônicas. E Edward Jenner, aprendiz do cirurgião inglês John Ludlow, fez seu mentor sorrir com complacência, quando considerou que uma camponesa, contaminada pela varíola bovina, estava imunizada para a doença que atacava humanos, provocando mortes, cegueira, e, nos mais afortunados cicatrizes inesquecíveis. Mas, da persistência de Jenner em vencer o ceticismo do mestre, nasceram as vacinas.
Antes que drogas como a penicilina, descoberta por pura coincidência, assegurasse a sobrevivência de milhões de pessoas, a partir do pós-guerra, princípios ativos contidos no mel, vinho e urina amenizaram parte do sofrimento de doentes e feridos. O Papiro de Smith, de 1700 a.C., registram os Root-Bernstein, e também o Papiro de Ebers, duzentos anos depois, descrevem o tratamento de ferimentos e queimaduras graves com uma mistura de mel e leite coagulado, contidos numa bandagem de musselina. Romanos, tribos no passado remotas, na África Ocidental, e índios americanos, conheciam esta prática que ainda sobrevive entre moradores rurais do sul dos Estados Unidos.
O Corão, livro sagrado do islamismo, também decanta os efeitos do mel quando diz que "o Senhor inspirou as abelhas para que criassem suas colméias nas montanhas/nas árvores e nas casas dos homens,/ De dentro de seus corpos vem/ uma bebida de várias cores,/de onde vem a cura para a humanidade". Como se vê, ao menos no passado, farmacologia e religião estiveram associadas e integradas à cultura.
Larvas devoradoras de carne em putrefação, um procedimento de virar o estômago, salvaram feridos de amputações terríveis numa época em que os modernos meios de combate a infeções não existiam. É bem verdade que nem sempre se pode distinguir larvas benéficas de outras nem tanto, mas há quem considere com seriedade um retorno a esta alternativa, em casos onde medicamentos são impotentes. É a expectativa de pesquisadores como Edward Pechter e Ronald Sherman, do Veterans Administration Hospital, em Long Beach, na Califórnia.
Argila e saliva também integram uma lista de medicamentos aparentemente improváveis a que observações e investigações deram consistência. O caso da argila tem um registro histórico interessante em Baden, na Alemanha, onde um condenado à morte propôs que, em vez da ação do carrasco, lhe fosse dada a alternativa de ingerir o veneno mais letal, desde que acompanhado de um torrão de terra sigilada, argila escavada todo dia 6 de agosto, na ilha de Lemnos, na Grécia.
Galeno tinha este pequeno torrão em alta conta. E a história registra que poderosos, como príncipes e papas, também engoliam doses preventivas do que consideram um antídoto contra envenenamentos. Experimentos em animais já haviam demonstrado a eficiência deste produto que, em 1581, em Baden, se revelou eficiente também para um condenado. Ele ingeriu uma dose de cloreto de mercúrio de três a seis vezes superior à suficiente para matar uma pessoa e, em seguida, engoliu uma pílula. Testemunhas contaram que teve sintomas de envenenamento, mas, em seguida, os efeitos foram amenizados e ele sobreviveu.
Quanto à saliva, estudos parecem demonstrar a eficiência dos antigos processos de se lamber ferimentos, tarefa, em muitos casos, feitas por cães. Investigações, citadas pelos Root-Bernstein, demonstraram que a saliva realmente tem propriedades anti-sépticas e antibióticas específicas, entre as quais a lisozima, enzima descoberta por Fleming, alguns anos antes da penicilina. A lisozima destrói a camada protetora de muitas bactérias. A saliva contém outros ingredientes como as mucinas, fibronectina, agentes com ação específica.
Em relação à urina, o conhecido especialista em ciência chinesa, Joseph Needham, sustenta que "a utilização da urina na farmacopéia de muitas nações antigas tem sido geralmente ignorada em épocas modernas... Os historiadores da medicina poderiam ter sido mais criteriosos ao rejeitar essa opção após as descobertas clássicas de S. Aschheim e B. Zoncekc, em 1927, da presença de grandes quantidades de hormônios sexuais na urina durante a gravidez e a constatação subseqüente de que toda urina, mas especialmente de animais como a égua, contém essas substâncias ativas..."
Quando os casos de Aids se alastraram, no começo da década passada, a terapia da urina foi parcialmente reativada, sem sucesso. Como outras promessas, não trouxe nenhum resultado efetivo. Mas não foi a única a falhar.
Os Root-Bernstein relatam o espanto de oficiais britânicos deslocados para o Saara, durante a Segunda Guerra Mundial, em ver árabes urinando nas feridas de soldados de Sua Majestade. Os ingleses reagiram com indignação a este procedimento que lhes pareceu insubordinação e ultraje à Union Jack. Mas era um caso típico de estranhamento cultural. Homens com acesso restrito à água haviam aprendido a usar a urina para limpar e esterilizar ferimentos. O Irã é um dos países onde esta prática sobrevive e por isso mesmo um indicador interessante de como estranhamentos culturais podem produzir a reações desencontradas e não apenas na farmacologia.
Aplicados a plantas alucinógenas, essas dificuldades trazem outros tipos de resistência, caso da Cannabis. O que não impede a existência de um antigo e misterioso conhecimento farmacológico inteiramente baseado nelas. Richard Evan Schultes e Albert Hofmann escreveram um belíssimo trabalho (Plants of Gods: Origins of Hallucinogenic Uses) sobra essa velha tradição. Schultes é diretor do jardim botânico da Universidade de Harvard e Hofmann, o sintetizador do ácido lisérgico, o LSD.
Há uma curiosa constação da parte de Schultes e Hofmann sobre não ser "um fato casual que os alucinógenos das plantas e hormônios cerebrais, como serotonina e noradrenalina terem a mesma estrutura básica".
Uma enorme variedade de plantas tem sido utilizada ao longo do tempo pelas mais diferentes sociedades humanas para alteração da consciência e procura de terapias eficazes. A linguagem metafórica de rituais primitivos tem contribuído para muitos equívocos envolvendo essas atividades. Mas esta também, certamente, é uma forma de estranhamento cultural entre sociedades com diferentes valores.
O curto texto de introdução ao trabalho é uma amostra da complexidade do tema. Schultes e Hofmann escrevem que "as plantas alucinógenas são complexas fábricas químicas (...) por isso não é de se estranhar que tenham tido um papel tão importante nos rituais religiosos de antigas civilizações e ainda sejam motivo de veneração e temor, como elementos sagrados para pessoas que vivem em culturas menos desenvolvidas, mais próximas de modos de vida ancestrais. Que maneira de se ter contato com o mundo espiritual teve o homem primitivo com o uso de plantas cujos efeitos psíquicos permitam a comunicação direta com o sobrenatural? Que método mais direto para permitir ao homem libertar-se dos limites prosaicos de sua existência mundana e penetrar os mundos que os alucinógenos criavam para ele?
Algumas plantas, indicam Schultes e Hofmann, "contêm compostos químicos capazes de provocar alucinações visuais, auditivas, tácteis, olfativas e gustativas, ou de produzir psicoses artificiais que, sem dúvida, eram conhecidas e foram utilizadas pelo Homem desde suas primeiras experiências com a vegetação ambiente".
As plantas alucinógenas, avaliam, "são estranhas, místicas, desconcertantes. Por que são assim? Porque só agora estão sendo objeto de estudo científico e o resultado destas pesquisas seguramente aumentará o interesse e importância do estudo destas plantas, pois a mente humana, da mesma forma que o corpo, também precisa de elementos corretivos e curativos".
Reconhecendo o desafio de investigar um universo tão amplo e desconhecido, Schultes e Hofmann esperam que o trabalho que desenvolveram possa "de uma ou outra forma, contribuir para os interesses da humanidade". Um público educado, consideram, "é parte do desenvolvimento do conhecimento científico, especialmente num campo tão controvertido como o das drogas alucinógenas". Como se vê, também aqui, a farmacologia não é uma atividade dissociada do corpo da cultura.
A ameaça de empresas farmacêuticas de levar a África do Sul aos tribunais internacionais contra a decisão de romper patentes para produzir genéricos anti-Aids, sugere que, desta maneira, a produção de medicamentos rompe o elo que a mantém como parte da cultura para satisfazer a um desejo de pura acumulação. Mas submeter-se aos interesses financeiros não deve ser uma postura da ciência, sob pena de grandes prejuízos para toda a sociedade humana. E essa, sem dúvida, foi uma das razões de protestos que ocorreram em muitos lugares, em apoio às decisões da África do Sul.
Reconduzir a farmacologia ao interior da cultura pode ser um novo desafio para a ciência. Para os céticos quanto a essa possibilidade, as plantas alucinógenas, conforme sustentam Schultes e Hofmann, podem ser o ponto de partida.
Ulisses Capozoli, jornalista especializado em divulgação de ciência, mestre e doutorando em ciências pela USP, é presidente da associação Brasileira de Jornalismo Científico
O conceito de fármacos, para a maioria das pessoas, muito provavelmente remete a um ambiente de alta complexidade tecnológica envolvendo estruturas moleculares as mais diversas e, outra característica de hoje: oportunidades de grandes lucros num mercado de bilhões de dólares.
Mas nem sempre foi assim. A farmacologia nasceu com a humanidade ainda que possa ter se transformado a ponto de parecer irreconhecível aos olhos de hoje. Mel, raízes, uma profusão de ervas, larvas, sem falar de saliva e mesmo urina, num passado ainda recente, foram a única chance de cura a pacientes necessitados, fossem eles pacatos comerciantes, mulheres em difíceis trabalhos de parto, agricultores sobrevivendo em áreas remotas, ou soldados feridos em campos de batalha.
O casal Robert e Michèle Root-Bernstein, em Honey, Mud, Maggots and Other Medical Marvels, traduzido no Brasil por A Incrível História dos Remédios (Editora Campus, 1998) é exemplo de uma fascinante incursão numa área do conhecimento onde o limite entre o aceitável e o repugnante, ou condenável, depende mais de valores sociais em vigor que de um potencial terapêutico. A cannabis, é um dos melhores exemplos.
Investigações arqueológicas registram a presença da Cannabis (indica, ruderalia e sativa) em tratamentos de saúde atribuídos desde partos difíceis, passando por estimulante sexual e tratamento de asma a, mais recentemente, glaucoma e enjôo produzido por quimioterapia ou radioterapia. Mesmo assim, esta planta, que ainda divide os pesquisadores quanto à sua classificação botânica, não venceu a resistência da maioria dos governos, em alguns casos, como ocorre no Brasil, mesmo para emprego homeopático, quando a diluição faz de seu princípio ativo, o THC, algo desprezível, ao menos na interpretação alopática.
A verdade é que os desafios, envolvendo a farmacologia, não são diferentes dos que se manifestam em outras áreas da ciência e a razão disso parece ser relativamente simples: o conhecimento do novo não pode ser assegurado pela pura tradição. Se fosse assim, o novo, em sua essência, não teria como manifestar-se. Galileu sorriu com desdém quando Kepler manifestou interesse por forças agindo à distância, a gravitação universal de Newton.
Críticos inconformados acusaram Wegener de "charlatanismo" com a idéia de placas tectônicas. E Edward Jenner, aprendiz do cirurgião inglês John Ludlow, fez seu mentor sorrir com complacência, quando considerou que uma camponesa, contaminada pela varíola bovina, estava imunizada para a doença que atacava humanos, provocando mortes, cegueira, e, nos mais afortunados cicatrizes inesquecíveis. Mas, da persistência de Jenner em vencer o ceticismo do mestre, nasceram as vacinas.
Antes que drogas como a penicilina, descoberta por pura coincidência, assegurasse a sobrevivência de milhões de pessoas, a partir do pós-guerra, princípios ativos contidos no mel, vinho e urina amenizaram parte do sofrimento de doentes e feridos. O Papiro de Smith, de 1700 a.C., registram os Root-Bernstein, e também o Papiro de Ebers, duzentos anos depois, descrevem o tratamento de ferimentos e queimaduras graves com uma mistura de mel e leite coagulado, contidos numa bandagem de musselina. Romanos, tribos no passado remotas, na África Ocidental, e índios americanos, conheciam esta prática que ainda sobrevive entre moradores rurais do sul dos Estados Unidos.
O Corão, livro sagrado do islamismo, também decanta os efeitos do mel quando diz que "o Senhor inspirou as abelhas para que criassem suas colméias nas montanhas/nas árvores e nas casas dos homens,/ De dentro de seus corpos vem/ uma bebida de várias cores,/de onde vem a cura para a humanidade". Como se vê, ao menos no passado, farmacologia e religião estiveram associadas e integradas à cultura.
Larvas devoradoras de carne em putrefação, um procedimento de virar o estômago, salvaram feridos de amputações terríveis numa época em que os modernos meios de combate a infeções não existiam. É bem verdade que nem sempre se pode distinguir larvas benéficas de outras nem tanto, mas há quem considere com seriedade um retorno a esta alternativa, em casos onde medicamentos são impotentes. É a expectativa de pesquisadores como Edward Pechter e Ronald Sherman, do Veterans Administration Hospital, em Long Beach, na Califórnia.
Argila e saliva também integram uma lista de medicamentos aparentemente improváveis a que observações e investigações deram consistência. O caso da argila tem um registro histórico interessante em Baden, na Alemanha, onde um condenado à morte propôs que, em vez da ação do carrasco, lhe fosse dada a alternativa de ingerir o veneno mais letal, desde que acompanhado de um torrão de terra sigilada, argila escavada todo dia 6 de agosto, na ilha de Lemnos, na Grécia.
Galeno tinha este pequeno torrão em alta conta. E a história registra que poderosos, como príncipes e papas, também engoliam doses preventivas do que consideram um antídoto contra envenenamentos. Experimentos em animais já haviam demonstrado a eficiência deste produto que, em 1581, em Baden, se revelou eficiente também para um condenado. Ele ingeriu uma dose de cloreto de mercúrio de três a seis vezes superior à suficiente para matar uma pessoa e, em seguida, engoliu uma pílula. Testemunhas contaram que teve sintomas de envenenamento, mas, em seguida, os efeitos foram amenizados e ele sobreviveu.
Quanto à saliva, estudos parecem demonstrar a eficiência dos antigos processos de se lamber ferimentos, tarefa, em muitos casos, feitas por cães. Investigações, citadas pelos Root-Bernstein, demonstraram que a saliva realmente tem propriedades anti-sépticas e antibióticas específicas, entre as quais a lisozima, enzima descoberta por Fleming, alguns anos antes da penicilina. A lisozima destrói a camada protetora de muitas bactérias. A saliva contém outros ingredientes como as mucinas, fibronectina, agentes com ação específica.
Em relação à urina, o conhecido especialista em ciência chinesa, Joseph Needham, sustenta que "a utilização da urina na farmacopéia de muitas nações antigas tem sido geralmente ignorada em épocas modernas... Os historiadores da medicina poderiam ter sido mais criteriosos ao rejeitar essa opção após as descobertas clássicas de S. Aschheim e B. Zoncekc, em 1927, da presença de grandes quantidades de hormônios sexuais na urina durante a gravidez e a constatação subseqüente de que toda urina, mas especialmente de animais como a égua, contém essas substâncias ativas..."
Quando os casos de Aids se alastraram, no começo da década passada, a terapia da urina foi parcialmente reativada, sem sucesso. Como outras promessas, não trouxe nenhum resultado efetivo. Mas não foi a única a falhar.
Os Root-Bernstein relatam o espanto de oficiais britânicos deslocados para o Saara, durante a Segunda Guerra Mundial, em ver árabes urinando nas feridas de soldados de Sua Majestade. Os ingleses reagiram com indignação a este procedimento que lhes pareceu insubordinação e ultraje à Union Jack. Mas era um caso típico de estranhamento cultural. Homens com acesso restrito à água haviam aprendido a usar a urina para limpar e esterilizar ferimentos. O Irã é um dos países onde esta prática sobrevive e por isso mesmo um indicador interessante de como estranhamentos culturais podem produzir a reações desencontradas e não apenas na farmacologia.
Aplicados a plantas alucinógenas, essas dificuldades trazem outros tipos de resistência, caso da Cannabis. O que não impede a existência de um antigo e misterioso conhecimento farmacológico inteiramente baseado nelas. Richard Evan Schultes e Albert Hofmann escreveram um belíssimo trabalho (Plants of Gods: Origins of Hallucinogenic Uses) sobra essa velha tradição. Schultes é diretor do jardim botânico da Universidade de Harvard e Hofmann, o sintetizador do ácido lisérgico, o LSD.
Há uma curiosa constação da parte de Schultes e Hofmann sobre não ser "um fato casual que os alucinógenos das plantas e hormônios cerebrais, como serotonina e noradrenalina terem a mesma estrutura básica".
Uma enorme variedade de plantas tem sido utilizada ao longo do tempo pelas mais diferentes sociedades humanas para alteração da consciência e procura de terapias eficazes. A linguagem metafórica de rituais primitivos tem contribuído para muitos equívocos envolvendo essas atividades. Mas esta também, certamente, é uma forma de estranhamento cultural entre sociedades com diferentes valores.
O curto texto de introdução ao trabalho é uma amostra da complexidade do tema. Schultes e Hofmann escrevem que "as plantas alucinógenas são complexas fábricas químicas (...) por isso não é de se estranhar que tenham tido um papel tão importante nos rituais religiosos de antigas civilizações e ainda sejam motivo de veneração e temor, como elementos sagrados para pessoas que vivem em culturas menos desenvolvidas, mais próximas de modos de vida ancestrais. Que maneira de se ter contato com o mundo espiritual teve o homem primitivo com o uso de plantas cujos efeitos psíquicos permitam a comunicação direta com o sobrenatural? Que método mais direto para permitir ao homem libertar-se dos limites prosaicos de sua existência mundana e penetrar os mundos que os alucinógenos criavam para ele?
Algumas plantas, indicam Schultes e Hofmann, "contêm compostos químicos capazes de provocar alucinações visuais, auditivas, tácteis, olfativas e gustativas, ou de produzir psicoses artificiais que, sem dúvida, eram conhecidas e foram utilizadas pelo Homem desde suas primeiras experiências com a vegetação ambiente".
As plantas alucinógenas, avaliam, "são estranhas, místicas, desconcertantes. Por que são assim? Porque só agora estão sendo objeto de estudo científico e o resultado destas pesquisas seguramente aumentará o interesse e importância do estudo destas plantas, pois a mente humana, da mesma forma que o corpo, também precisa de elementos corretivos e curativos".
Reconhecendo o desafio de investigar um universo tão amplo e desconhecido, Schultes e Hofmann esperam que o trabalho que desenvolveram possa "de uma ou outra forma, contribuir para os interesses da humanidade". Um público educado, consideram, "é parte do desenvolvimento do conhecimento científico, especialmente num campo tão controvertido como o das drogas alucinógenas". Como se vê, também aqui, a farmacologia não é uma atividade dissociada do corpo da cultura.
A ameaça de empresas farmacêuticas de levar a África do Sul aos tribunais internacionais contra a decisão de romper patentes para produzir genéricos anti-Aids, sugere que, desta maneira, a produção de medicamentos rompe o elo que a mantém como parte da cultura para satisfazer a um desejo de pura acumulação. Mas submeter-se aos interesses financeiros não deve ser uma postura da ciência, sob pena de grandes prejuízos para toda a sociedade humana. E essa, sem dúvida, foi uma das razões de protestos que ocorreram em muitos lugares, em apoio às decisões da África do Sul.
Reconduzir a farmacologia ao interior da cultura pode ser um novo desafio para a ciência. Para os céticos quanto a essa possibilidade, as plantas alucinógenas, conforme sustentam Schultes e Hofmann, podem ser o ponto de partida.
Ulisses Capozoli, jornalista especializado em divulgação de ciência, mestre e doutorando em ciências pela USP, é presidente da associação Brasileira de Jornalismo Científico
Nenhum comentário:
Postar um comentário